CONTRA O LATROGENOCÍDIO DO POVO LÍBIO


CONTRA O LATROGENOCÍDIO DO POVO LÍBIO



Mantemos a recomendação do vídeo de Jean-Luc Godard, com sua reflexão sobre a cultura européia-ocidental, enquanto a agressão injusta à Nação Líbia perdurar.




Como contraponto à defesa de civis pelos americanos, alardeada em quase todas as recentes guerras de agressão que promovem, recomendamos o vídeo abaixo, obtido pelo Wikileaks e descriptografado pela Agência Reuters

domingo, 13 de março de 2011

Madre Maurina, Minha Lembrança, por Rose Nogueira

Publicado em 10-Mar-2011


Madre Maurina era clarinha, tão branquinha e sua pele tão rosada que, mesmo naquela situação, a gente prestava atenção.

Ocupei sua cela, a 4 do Fundão do corredor do DOPS. Levaram-na para o presídio Tiradentes naquele mesmo dia para que a cela fosse ocupada por mim, pela Ana Vilma Penafiel e por Tiana, uma professora que gritava ter sido presa por engano. À noite trouxeram Makiko Kishi, presa por ter fotografado o grande Carlos Marighella logo depois de ter sido assassinado pelo Esquadrão da Morte em 04 de novembro de 1969.

Tiana estava agressiva, inconformada. Quando parou de gritar na pequena janela da porta grossa, disse-nos mais ou menos o seguinte: "Por que vocês não são como a Madre Maurina, que falava comigo e me acalmava? Ela era o meu remédio!" E voltou a gritar na janelinha: "Cadê a Madre Maurina, cadê a Madre Maurina?" Como esquecer daquela noite, em que os gritos de Tiana foram abafados pela outra gritaria que se seguiu, quando os assassinos desceram para o corredor das celas festejando seu crime? Nós não éramos a Madre Maurina, a doce pessoa descrita nervosamente por Tiana. Não tínhamos a sabedoria e o poder para, numa situação daquelas, ser o seu remédio, o bálsamo necessário para alguém que sofria com seu próprio transtorno.

Nas vésperas do Natal, ao chegar ao presídio Tiradentes, subir a escada monumental da torre e ser levada para a cela da direita, vi dois rostos na cela maior em frente, à esquerda, observando quem chegava. Um deles o da Dulce Maia, que eu ainda não conhecia e depois, até hoje, passou a ser muito querida. O outro, eu reconheci pela descrição constante de Tiana: era clarinha, muito rosada, já tinha idade, de óculos, a bondade percebida à distância. A Madre Maurina.

Ficamos juntas poucos dias no Tiradentes. Logo depois abriram as celas porque a cada dia chegavam mais meninas e ela foi transferida para Ribeirão Preto, se não me engano. Ocupei de novo o lugar da Madre Maurina: fiquei na cela grande, a celona. Sabíamos que tinha sido barbaramente torturada. Havia rumores que teria sido violentada. Acho que nunca houve quem lhe perguntasse isso, não sei. Lembro-me dela com um roupão florido, comprido, e para mim perguntou apenas do meu bebê, que tinha um mês na época da prisão. Contei-lhe que havia tomado uma injeção à força no DOPS para cortar o leite. Ela me disse: "Foi uma descarga de estrógeno". E mais: "massageie os seios, use soutien, tenha cuidado que um dia podem aparecer nódulos...", enquanto segurava minha mão.
Esse foi nosso único contato. Ela foi embora, para uma outra prisão.

Acompanhamos, tensas, meses depois, a troca da Madre e de outros companheiros pelo cônsul do Japão Nobuo Oguchi. O mundo todo falou nela, a freira presa pela ditadura. Foi banida, perdeu seus direitos políticos e sua cidadania, não podia voltar ao país. Mas voltou.

Em 1979, quando era repórter do Jornal Nacional, fui escalada para cobrir o julgamento dela, que insistiu em voltar ao Brasil apesar de ter sido banida. Pedi para não ir. Gostaria de ter ido como companheira e não como profissional. Mas o chefe foi irredutível. E ainda ouvi: "sem emoção, hem, sem emoção... postura profissional!" Naquele tempo era assim. Ele estava me pedindo o impossível.

Na auditoria militar, no mesmo lugar onde eu tinha sido julgada anos antes, revi Madre Maurina, ao lado de dom Paulo Evaristo Arns. Dessa vez, ela ocupava uma cadeira daquelas, como a que tinha sido minha: a de ré, na segunda fila - acho que a primeira estava vazia; é assim na minha lembrança. Estava ali como eu tinha estado, diante de um tribunal composto por quatro homens fardados e um juiz de toga no meio. Quem eram eles? Quem pensavam que eram?

A imprensa só podia ficar em pé ao lado daquele pequeno auditório. Fui até a frente, queria vê-la, queria que me visse, dei um adeus rápido com a mão, mas mandaram-me voltar para trás. Ela me olhou e sorriu.

Isso foi um pouco antes da lei da Anistia. Estava nas ruas, em todo lado, a campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. Dom Paulo estava certo: era preciso furar as leis da ditadura. A vinda da Madre Maurina para ser julgada foi uma exigência dela e acho que um acordo dele.

Na calçada da avenida Brigadeiro Luiz Antonio todos se abraçavam. Ela fora absolvida. Mas queria voltar para o México, onde vivia num convento - explicou no microfone à minha pergunta sobre o exílio. Depois me olhou nos olhos, sorriu, pegou minha mão e perguntou: "E o nenê, como é que está o nenê?" Nos abraçamos longamente, chorei na hora e choro agora. Voltei pro jornal, levei a maior bronca pela emoção e pedi demissão - mas isso é uma outra história, que continua com o Carlito Maia, irmão da Dulce, a dona do outro rosto da celona, que me fez voltar atrás um mês ou dois depois, para trabalhar no projeto da TV Mulher.


Madre Maurina foi para o México, disse que ia tranquila e não pensava voltar tão cedo. Agora está no céu.



Rose Nogueira é jornalista e membro do grupo Tortura Nunca Mais.


extraído do Blog do Zé Dirceu, http://www.zedirceu.com.br/index.php?option=com_content&task=blogcategory&id=30&Itemid=87, em 13/03/11

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